Assim espero...

"Esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo..."

A Cura


"Oh, solitude of longing
Where love has been confined
Come healing of the body
Come healing of the mind

Oh, see the darkness yielding 
That tore the light apart 
Come healing of the reason 
Come healing of the heart"
[let's heal!]

...old ideas

Conta a lenda



Conta a lenda que dormia 
Uma Princesa encantada 
A quem só despertaria 
Um Infante, que viria 
De além do muro da estrada. 

Ele tinha que, tentado, 
Vencer o mal e o bem, 
Antes que, já libertado, 
Deixasse o caminho errado 
Por o que à Princesa vem. 

A Princesa Adormecida, 
Se espera, dormindo espera. 
Sonha em morte a sua vida, 
E orna-lhe a fronte esquecida, 
Verde, uma grinalda de hera. 

Longe o Infante, esforçado, 
Sem saber que intuito tem, 
Rompe o caminho fadado. 
Ele dela é ignorado. 
Ela para ele é ninguém. 

Mas cada um cumpre o Destino — 
Ela dormindo encantada, 
Ele buscando-a sem tino 
Pelo processo divino 
Que faz existir a estrada. 

E, se bem que seja obscuro 
Tudo pela estrada fora, 
E falso, ele vem seguro, 
E, vencendo estrada e muro, 
Chega onde em sono ela mora. 
E, inda tonto do que houvera, 
A cabeça, em maresia, 
Ergue a mão, e encontra hera, 
E vê que ele mesmo era 
A Princesa que dormia. 

(Fernando Pessoa, in "Cancioneiro")


Eros & Psiquê

Um rei e uma rainham tinham três filhas. Os encantos das duas mais velhas eram fora do comum mas a beleza da mais nova era tão espantosa que a pobreza da linguagem é incapaz de expressar o devido louvor. A fama da sua beleza era tal que estrangeiros dos países vizinhos vinham em multidão para desfrutar da visão, olhando para ela atónitos e rendendo-lhe a homenagem que só à própria Vénus é devida. De facto Vénus encontrou os seus altares desertos enquanto os homens ofereciam a sua devoção a esta virgem. Quando ela passava, o povo cantava-lhe louvores e espalhava no caminho flores e grinaldas.

A exaltação de um mortal constítuia uma perversão da homenagem devida apenas a seres imortais, o que muito ofendia a verdadeira Vénus. Abanando os seus caracóis de ambrósia com indignação exclamava: "Devo eu ser eclipsada nas minhas honrarias por uma rapariga mortal? Nesse caso foi em vão que aquele pastor, cujo juízo o próprio Júpiter aprovou, me deu a palma da beleza sobre as minhas ilustres rivais, Palas e Juno. Mas ela não usurpará tão calmamente as minhas honras. Dar-lhe-ei razão para se arrepender de beleza tão ilegítima."     Chama então o seu filho alado Cupido, só por si suficientemente maldoso, e incita-o e provoca-o com as suas queixas. Apontando Psique diz-lhe: "Meu querido filho, castiga aquela obstinada beleza; dá à tua mãe uma vingança tão doce quanto as suas injúrias são grandes; infunde o coração dessa altiva rapariga uma paixão por algum ser mesquinho, indigno e de baixo nível para que ela possa colher uma mortificação tão grande quanto a sua presente exultação e triunfo."

Cupido preparou-se para obedecer às ordens de sua mãe. Existem duas fontes no jardim de Vénus, uma de água doce, outra de água amarga. Cupido encheu dois vasos de âmbar, um de cada fonte, e, suspendendo-os na ponta da sua aljava, apressou-se em direção à Câmara de Psique, que encontrou a dormir. Verteu algumas gotas da fonte amarga nos seus lábios, embora a visão dela quase o tenha levado à compaixão; depois tocou-lhe o lado com a ponta da flecha. Ao ser tocada ela acordou e abriu os olhos sobre Cupido (ele mesmo invíisível), o que o assustou de tal modo que na sua confusão se feriu com a sua própria flecha. Sem atender à sua ferida, todo o seu pensamento era agora reparar o mal que tinha feito e derramou as gotas balsâmicas da alegria sobre os sedosos anéis do cabelo da rapariga.

Psique, de então em diante sem os favores de Vénus, não derivou qualquer benefício dos seus encantos. Era verdade que todos os olhos se colavam ansiosamente nela e todas as bocas a elogiavam; mas nem rei, nem jovem princípe, nem plebeu se apresentava para pedi-la em casamento. As suas duas irmãs mais velhas, de moderados encantos, estavam casadas havia muito tempo com dois princípes reais; mas Psique, solitária nos seus aposentos, deplorava a sua solidão, cansada daquela beleza que, embora proporcionasse lisonja em abundância, falhara em despertar o amor.

Os pais, receando que sem o saberem tivessem despertado a ira dos deuses, consultaram o oráculo de Apolo e receberam esta resposta: "A virgem está destinada a ser noiva de um amante não mortal. O seu futuro marido espera-a no cimo da montanha. É um monstro a que nem os homens, nem os deuses podem resistir."

Este terrível decreto do oráculo encheu o povo de assombro e desânimo e os pais abandonaram-na à dor. Mas Psique disse: "Porquê, queridos pais, lamentar a minha sorte? Deveríeis ter antes lamentado quando o povo derramou sobre mim honras imerecidas, chamando-me Vénus a uma só voz. Percebo agora que sou uma vítima desse nome. Submeto-me.Conduzi-me àquela rocha a que o meu infeliz fado me destinou." Assim, todas as coisas tendo sido preparadas, a real donzela tomou o seu lugar na procissão, que mais parecia um cortejo fúnebre do que uma pompa nupcial, e, com os pais e entre as lamentações do povo, subiu à montanha em cujo topo a deixaram sozinha, para regressarem a casa com os corações dolorosos.

Estava Psique no cimo da montanha, ofegante de medo, os olhos cheios de lágrimas, quando o gentil Zéfiro a elevou da terra e a transportou com um movimento fácil para um vale florido. Pouco a pouco a sua mente compôs-se e recostou-se na faixa de erva para dormir. Ao acordar, restaurada pelo sono, olhou à volta e viu ali perto um agradável bosque de altas e frondosas árvores. Entrou e no meio descobriu uma fonte de águas claras e cristalinas, bem perto da qual se erguia um magnífico palácio cuja augusta fachada impressionava o observador como não sendo a obra de mãos mortais mas o retiro feliz de algum deus. Atraída pelo espanto e pela admiração, aproximou-se do edifício e aventurou-se a entrar. Todos os objectos que encontrava enchiam-na de prazer e espanto. Pilares dourados suportavam telhados em abóbada e as paredes eram enriquecidas com esculturas e pinturas representando animais de caça e cenas rurais, adaptadas para deliciar o olhar do espetador. Prosseguindo deu-se conta de que, para além dos aposentos de cerimonial, havia outros repletos de toda a espécie de tesouros e bela e preciosas produções da natureza e da arte.

Enquanto os olhos se ocupavam deste modo, uma voz dirigia-se-lhe, embora ela não visse ninguém, proferindo estas palavras: "Soberana senhora, tudo o que vedes é vosso. Nós, cujas vozes ouvis, somos vossos servos e obedeceremos às vossas ordens com o maior cuidado e diligência. Retirai-vos, pois, para o vosso quarto e repousai na vossa cama de penas, e quando vos achardes  pronta ide para o banho. Uma refeição aguarda-vos na alcova vizinha quando vos aprouver tomar aí assento."

Psique deu ouvidos às orientações dos servidores vocais e, depois do repouso e de se refrescar pelo banho, sentou-se na alcova, onde uma mesa de imediato se apresentou, sem qualquer ajuda visível de criados ou servos, e se cobriu com os alimentos mais requintados e vinhos como o néctar. Também os ouvidos eram regalados com música de tocadores invísiveis; um cantava, o outro tocava alaúde e todos eram enquadrados pela maravilhosa harmonia de um coro completo. 

Não tinha ainda visto o marido que lhe fora destinado. Vinha apenas nas horas de escuridão e fugia antes do alvorocer, mas as suas palavras eram cheias de amor e inspiravam nela uma paixão igual. Muitas vezes lhe pedia que ficasse e a deixasse vê-lo, mas ele não consentia. "Porque desejas tu ver-me?", perguntava ele; "Duvidas de algum modo do meu amor? Tens algum desejo não gratificado? Se me visses, talvez me temesses, talvez me adorasses, mas tudo o que peço é que me ames. Prefiro antes que me ames como um igual do que me adores como um deus."

Este raciocínio aqueitava Psique por algum tempo e, enquanto a novidade durou, ela sentiu-se completamente feliz. Mas por fim o pensamento dos pais, deixados na ignorância do seu destino, e das irmãs, impedidas de partilhar com ela as delícias da situação, afligiam a sua mente e fizeram-na começar a sentir o seu palácio apenas como uma esplêndida prisão. Uma noite, quando o marido veio, ela contou-lhe a sua angústia e por fim obteve dele um consentimento contrariado para que as irmãs, fossem trazidas para a ver.qu

Assim, chamando Zéfiro, inteirou-o das ordens do marido e ele, prontamente obediente, em breve as trouxe da montanha para o vale da irmã. Abraçaram-na e ela retribuiu-lhes os carinhos. "Venham", disse Psique, "entrem comigo na minha casa e refresquem-se com seja o que for que a vossa irmã tem para vos oferecer." Pegando-lhes nas mãos guiou-as pelo palácio dourado e confiou-as ao cuidado da numerosa comitiva de servidores vocais, para as refrescarem no banho e à mesa e para lhes mostrarem todos os seus tesouros. A visão de todas estas delícias celestiais causou inveja nos seus corações, vendo a irmã mais nova possuidora de um estatuto e esplendor tão superior aos delas.

Puseram-lhe inúmeras questões, entre as quais que tipo de pessoa era o marido. Psique respondeu que era um belo rapaz que geralmente passava as horas do dia caçando nas montanhas. As irmãs, não satisfeitas com esta resposta, em breve a fizeram confessar que ela nunca o tinha visto. Prosseguiram depois enchendo-lhe o coração de negras suspeitas. "Lembra-te bem do´oráculo Pítico que te declarou destinada a casar com um monstro tremendo e horrível. Os habitantes deste vale dizem que o teu marido é uma terrível e monstruosa serpente que te alimenta durante algum tempo com iguarias para que depois te possa devorar. Ouve o nosso conselho. Mune-te de uma lamparina e de uma faca aguçada; esconde-as para que o teu marido não as descubra, e, quando ele estiver a dormir, desliza para fora da cama, traz a lamparina e vê por ti mesma se o que eles dizem é verdade ou não. Se for, não hesites em cortar a cabeça do monstro e assim recuperarás a tua liberdade."

Psique resistiu tanto quanto pôde a estas persuasões, mas elas não deixaram de ter um efeito na sua mente e, quando as irmãs partiram, as palavras dela e a sua própria curiosidade foram demasiadas para ela resistir. Preparou assim a lamparina e a faca aguçada e escondeu-as  fora da vista do marido. Quando ele tinha caído no seu primeiro sono, ela levantou-se silenciosamente, destapou a luz e viu não um monstro horrível mas o mais belo e encantador dos deuses, com os caracóis dourados sobre o pescoço de neve e as faces rosadas, com asas rociosas nos ombros, mais brancas do que a neve, e com penas tão brilhantes quanto as tenras flores da primavera. Ao inclinar a lamparina para ter uma visão mais próxima da sua face, uma gota de óleo quente caiu no ombro do deus que, assustado, abriu os olhos e os fixou sobre ela; depois sem dizer uma palavra, estendeu as asas e voou pela janela. Cupido, olhando-a no meio da poeira, parou o voo por um instante e disse: "Tonta Psique, é assim que retribuis o meu amor? Depois de ter desobedecido às ordens da minha mãe e ter-te feito minha mulher, achas-me um monstro e cortas-me a cabeça? Mas vai; regressa para as tuas irmãs, cuja opinião pareces preferir à minha. Não te inflijo outra punição que não seja a de te abandonar para sempre. O amor não pode morar onde mora a suspeição." Assim dizendo fugiu deixando a pobre Psique prostrada no chão, encendo o lugar de lúgubres lamentações.

Ao recuperar algum grau de compostura olhou à sua volta mas os jerduns tinham desaparecido e encontrou-se no campo aberto da cidade onde as irmãs moravam. Para aí se dirigiu e contou-lhes toda a história, que aquelas malignas criaturas fingiram lamentar mas com a qual se regozijaram interiormente: "é que agora", diziam, " talvez escolha uma de nós." Com esta ideia e sem  dizer uma palavra das suas intenções, cada uma delas se levantou cedo na manhã seguinte e, subindo à montanha, chamou por Zéfiro ao atingir o topo, para que a recebesse e atransportasse ao seu senhor; depois, saltando e não sendo sustentada por Zéfiro, caíu do precípicio e despedaçou-se no solo.

Psique entretanto vagueava de dia e de noite, sem comida e sem repouso, à procura do marido. Avistando um magnífico templo no cimo de uma alta montanha, suspirou e disse para si mesma: "Talvez o meu amor e meu senhor habite além», e para lá dirigiu os seus passos.

Mal tonha entrado viu pilhas de trigo, algum solto em espiga outro amarrado em feixe, com espigas de cevada à mistura. Espalhados pelo lugar estavam foices, ancinhos e todos os instrumentos da colheita, sem ordem, como se descuidadamente atirados das mãos dos ceifeiros cansados nas horas sufocantes do dia.

A piedosa Psique pôs termo a esta confusão imprópria, separando e atribuindo cada coisa ao lugar e espécie que lhe eram adquados, acreditando que não deveria negligenciar nenhum dos deuses mas antes esforçar-se pela sua piedade por empenhar todos na sua causa. A sagrada Ceres, de cujo templo se tratava, encontrando-a tão religiosamente ativa, falou-lhe nestes termos: "Ó Psique, verdadeiramente digna da nossa piedade, embora não te possa resguardar da reprovação de Vénus, posso contudo ensinar-te como melhor apaziguar o seu desagrado. Vai pois e rende-te voluntariamente à tua senhora e soberana e tenta, pela modéstia e submissão, ganhar o seu perdão e talvez o seu favor te restaure o marido que perdeste."

Psique obedeceu às ordens de Ceres e dirigiu-se ao templo de Vénus, tentando fortalecer a mente e ruminando sobre o que devia dizer e como melhor propiciar a zangada deusa, sentindo que o resultado era duvidoso e talvez fatal.

Vénus recebeu-a com face irada. "Mais desobediente e infiel de todos os servos", disse ela, "lembras-te por fim que tens uma senhora? Ou vieste antes para ver o teu marido doente, acamado pela ferida que lhe deu a sua amorosa mulher? És tão desfavorecida e desagradável que a única maneira de mereceres o teu amante será à força de laboriosa diligência. Testarei a tua capacidade nas lides domésticas." Ordenou então que Psique fosse levada ao armazém do templo, onde se amontoava uma grande quantidade de trigo, cevada, painço, ervilhas, feijões e lentilhas, preparadas como alimento para as suas pombas, e disse-lhe: "Separa todos estes grãos, põe todos os da mesma espécie num quinhão e vê se te despachas antes do anoitecer." Dizendo isto partiu e deixou-a entregue à sua tarefa.

Psique, porém, totalmente consternada face ao enorme trabalho, sentou-se estúpida e silenciosa, sem mover um dedo diante daquela inextricável pilha.

Enquanto se sentava desesperada, Cupido incitou as pequenas formigas, nativas do campo, a que tivessem pena dela. A chefe do formigueiro, seguida de hostes inteiras de súbditos de seis patas, aproximou-se da pilha e com a mais completa diligência, tomando grão a grão, separaram a pilha, selelecionando cada espécie para a sua porção; quando tudo estava pronto desapareceram num ápice.

Ao aproximar-se o crepúsculo, Vénus regressou do banquete dos deuses, emanando odores e coroada de rosas. Ao ver a tarefa realizada exclamou: "Isto não é trabalho teu, malvada, mas dele, que para tua e sua infelicidade tu enfeitiçaste." Assim dizendo, atirou-lhe um pedaço de pão preto como refeição e foi-se embora.

Na manhã seguinte Vénus ordenou que Psique fosse chamada à sua presença e disse-lhe: "Olha aquele arvoredo que se estende ao longo da margem da água. Aí encontrarás caneiros a pastar sem pastor, com brilhantes velos de ouro nos costados. Vai, traz-me uma amostra daquela preciosa lã apanhada em cada um dos seus velos."     Obedientemente Psique foi à margem do rio, preparada para fazer o melhor na execução do comando. Mas o deus do rio inspirou os juncos com múrmurios harmoniosos que pareciam dizer: "Ó donzela, severamente testada, não desafies a perigosa maré, nem te aventures entre os formidáveis carneiros do outro lado, pois enquanto estão sob a influencia do sol nascente, ardem com um cuel desejo de dstruir os mortais com os seus cornos pontiagudos e rudes dentes. Mas quando o sol do meio dia tiver levado o gado para a sombra e o serenoespírito da maré os tiver embalado e adormecido, então poderás atravessar em segurança e encontrarás lá a lã dourada pegada nos arbustos e aos troncos das árvores."

Assim, o compassivo deus do rio deu a Psique instruções de como desempenhar a sua tarefa e, seguindo estas instruções, ela em breve regressou a Vénus com os braços cheios do velo dourado; mas não recebeu a aprovação da implacável soberana, que disse: "Sei muito bem que não é obra tua o teres completado a tarefa, e eu ainda não estou convencida de que tenhas alguma capacidade para te fazeres útil. Mas tenho outra tarefa para ti. Anda, toma esta caixa, segue o teu caminho até às sombras infernais e dá-a Prosérpina, dizendo-lhe: ' A minha senhora, Vénus, deseja que lhe envie um pouco da vossa beleza, pois ao cuidar do filho doente ela perdeu alguma da sua.' Não te demores na tua incumbência pois devo-me pintar para aparecer esta noite no círculo dos deues e das deusas."

Psique satisfez-se com a proximidade da sua destruição, obrigada como estava a ir pelo seu próprio pé diretamente paa o Érebo. Pelo que, e para não adiar o que não podia ser evitado, subiu ao topo de uma alta torre para daí se atirar de cabeça e assim descer pelo caminho mais curto para a região inferior das sombras. Mas uma voz da torre dise-lhe: "Porque razão, infeliz rapariga, procuras pôr fim aos teus dias de modo tão terrível? E que cobardia te faz desanimar sob este último perigo quando foste tão miraculosamente apoiada em todos os anteriores?" A voz disse-lhe depois como, seguindo por uma certa cave, podia atingir o reino de Plutão e como podia evitar os perigos do caminho, passar por Cérbero, o cão de três cabeças, e convencer o barqueiro Caronte a atravessar com  ela o rio negro a trazâ-la de volta. Mas a voz acrescentou: " Quando Prosérpina te tiver dado a caixa, cheia da sua beleza, isto terá de ser seguido por ti mais do que tudo o resto, que nem sequer por uma vez abras ou olhes o interior da caixa, que não deixes a tua curiosidade espiar o tesouro da beleza da deusa."

Psique, encorajada pelo conselho, obedeceu em todas as coisas e tomando em atenção os procedimentos chegou em segurança ao reino de Plutão. Foi admitida no palácio de Prosérpina e, sem aceitar o delicado assento ou o delicioso banquete que lhe foram oferecidos e contentando-se com pão escuro como alimento, entregou a mensagem de Vénus. Pouco depois a caixa foi-lhe entregue, fechada e contendo o prcioso artigo. Regressou então pelo caminho de volta, feliz por mais uma vez voltar à luz do dia. Contudo, tendo com tão grande sucesso, até ao momento, desempenhado a sua perigosa tarefa, um desejo apoderou-se dela de examinar o conteúdo da caixa. "Será que eu, que transporto esta beleza divina, não tiro uma pitada para pôr nas maçãs do rosto e aparecer melhor aos olhos do meu amado marido?" Assim dizendo, abriu cuidadosamente a caixa mas nada encontrou aí de beleza, apenas um infernal e verdadeiro sono de Estige que, liberto da sua prisão, se apoderou dela e a fez cair no meio da estrada, cadáver adormecido sem sentido ou movimento.

Cupido, porém, já recuperado da sua ferida e incapaz de suportar por mais tempo a ausência da sua amada Psique, deslizando pela mais pequena fenda da janela do seu quarto, que aconteceu estar aberta, voou até ao lugar onde Psique estava deitada, juntou o sono do seu corpo, fechou-o de novo na caixa e acordou-a com um leve toque de uma das suas flechas. "De novo", disse ele, "quase pereceste, vítima da mesma curiosidade. Desempenha agora rigorosamente a tarefa que te foi imposta pela minha mãe e eu me encarregarei do resto."     Então Cupido, rápido como o relâmpago, penetrou o alto dos céus e apresentou-se diante de Júpiter com a sua súplica. Júpiter escutou-o com um ouvido favorável e advogou a causa dos amantes com tanta determinação que conseguiu obter o consentimento de Vénus. Enviou de seguida Mercúrio a Psique para que a trouxesse à assembleia celestial. à sua chegada, estendeu-lhe um cálice de ambrósia, dizendo: "Bebe, Psique, e sê imortal; jamais Cupido romperá o nó com que se atou e estas núpcias serão perpétuas."

Assim se uniu Psique por fim a Cupido e em devido tempo tiveram uma filha cujo nome foi Prazer.

(A Idade da Fábula, Thomas Bulfinch, Editora Vega, 1ª edição, 1999)

Não passou



Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão - a tua mão, nossas mãos -
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.


(Carlos Drummond de Andrade)

Ela luta por sua vida (?)

"She looks at the rain as it pours
And she fights for her life as she goes
In a store with a thought she has caught by a thread"

Be good, be good

Uma lindeza de musiquinha!

O segredo da felicidade

Imagine uma árvore grande e frondosa que, chegada a estação devida, sempre dá belos frutos. Ela está plantada próxima à margem de um rio e por isso suas folhas não murcham.

Visualizou? Agora pense que VOCÊ é essa árvore... Dá uma sensação de êxito, né? Pois se isso não é felicidade - ter sucesso em tudo o que fizer - eu não sei o que mais pode ser!

E felicidade é mesmo coisa que todo mundo deseja. Mas como ser feliz? Qual é a receita?

Eu arriscaria responder que o salmista do primeiro poema deu dicas muito válidas para desvendar esse segredo (claro, com interpretação e releitura minhas!).

Primeiro, como identificar facilmente o caminho do erro, que deve ser evitado e jamais percorrido:
1) Não peça opinião a pessoas que zombam de Deus. 
2) Não siga o exemplo de vida delas. 
3) Não dê espaço para conversas que ridicularizem sua espiritualidade.

E, ao contrário, o que se deve fazer:
1) Mantenha em mente que os preceitos divinos são a mais segura fonte inesgotável de alegria verdadeira. 
2) Medite nos seus valores espirituais todos os dias, ao despertar e antes de dormir. 
3) Pense em como fazer para chegar mais perto de Deus, através de seus pensamentos e ações cotidianas.

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Bem-aventurado o homem que
não anda segundo o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores.
Antes tem o seu prazer na lei do Senhor,
e na sua lei medita de dia e de noite.

Pois será como a árvore
plantada junto a ribeiros de águas,
a qual dá o seu fruto no seu tempo;
as suas folhas não cairão,
e tudo quanto fizer prosperará.

Não são assim os ímpios;
mas são como a moinha que o vento espalha.
Por isso os ímpios não subsistirão no juízo,
nem os pecadores na congregação dos justos.
Porque o Senhor conhece o caminho dos justos;
porém o caminho dos ímpios perecerá.

E agora, José?!


[aff!]

Psicologia e Genética: O Que Causa o Comportamento?

A genética comportamental é uma disciplina científica que estuda os mecanismos genéticos e neurobiológicos envolvidos em diversos comportamentos animais e humanos. Podemos caracterizá-la como uma área de intersecção entre a genética e as ciências de comportamento.

A engenharia genética forneceu as ferramentas necessárias ao estudo do comportamento associado à genética molecular. Isto permite que, progressivamente, possamos avançar na identificação de genes capazes de modular certos comportamentos, e de entender como estes genes interagem com o ambiente na formação de traços normais e patológicos da personalidade humana.

O impacto dessa área de conhecimento na Psicologia é tremendo. Estamos vivendo uma verdadeira revolução no entendimento das causas do comportamento. No entanto, a Psicologia, particularmente aqui no Brasil, parece desconhecer estes avanços. Um conjunto de premissas teóricas e metodológicas que podemos chamar de “modelo padrão de causalidade do desenvolvimento da personalidade” exerce um efeito profundo sobre a população leiga e, infelizmente, na maioria dos profissionais em psicologia. A expressão “efeito paradigma” cunhada pelo cientista social Joel Barker aplica-se neste caso - o paradigma tradicional filtra a percepção de modo a impedir a emergência de um novo paradigma.


Comportamento e genética

A história da rejeição dos achados da genética tem um ponto importante nas idéias nazistas. O nazismo tentou usar a genética para amparar sua teoria da superioridade ariana, considerando como seres inferiores os negros, ciganos, eslavos, retardados e deformados, justificando assim o seu envio para campos de extermínio. É desnecessário comentar que essa interpretação é pura fantasia de mentes doentias e não tem qualquer embasamento científico.

A psicologia americana na época da segunda guerra mundial era radicalmente ambientalista, e em função da associação “nazismo-genética” afastou-se ainda mais dessa ciência. Admitir diferenças genéticas entre João e Pedro em habilidades cognitivas, por exemplo, seria aceitar os pressupostos que justificariam o fascismo e o racismo. Até hoje encontramos essa concepção no meio acadêmico de esquerda da Psicologia. Apesar de partilhar da preocupação em rechaçar ideologias de extrema direita, acredito que não é mais possível sustentar este tipo de crítica à genética pois é baseada em um equívoco grosseiro.

Uma outra concepção que afasta as pessoas do reconhecimento das contribuições da genética comportamental é a posição já ultrapassada do “determinismo genético”, combinada ao que é referido na literatura como “falácia naturalista”. O “determinismo genético” postula que certos aspectos nossa personalidade e nosso comportamento seriam definidos por nossos genes, de modo inescapável. Essa posição está completamente ultrapassada, sabemos hoje que todo comportamento depende, em maior ou menor grau, de fatores genéticos e de fatores ambientais, interagindo de maneira extremamente complexa.

A palavra determinação é equivocada, e deve ser substituída por expressões como tendências, propensões ou influências genéticas. Os genes definem tendências, mas são as experiências individuais que, sempre, as modulam. Qualquer gene precisa, para haver a chamada expressão adequada, de determinadas circunstâncias externas, sejam bioquímicas, físicas ou fisiológicas. A pergunta clássica “este comportamento é herdado ou adquirido pela experiência?” perde completamente o sentido, dando lugar à difícil questão “como é que os genes interagem com o ambiente na produção deste comportamento?.”

A “falácia naturalista” é outra noção perigosa, mas espantosamente difundida. Refere-se a um equívoco na interpretação da teoria de evolução, estendendo-se a qualquer característica que seja diretamente influenciada pelos genes. Refere-se ao salto entre aquilo que “é” para o que “deve ser”. Ou seja, cair na “falácia naturalista” é concluir que, se nossa espécie apresenta uma característica comportamental com modulação genética (aquilo que é), então esse seria o padrão “natural” ou “correto” de conduta (aquilo que deve ser). Em um exemplo, se as pesquisas demonstram uma forte tendência masculina para a infidelidade conjugal, e admitindo-se uma base genética para esta diferença sexual, não poderíamos sustentar a inevitabilidade da traição masculina, uma vez que é o comportamento “natural”?

Darwin concebeu a seleção natural como um processo mecânico, sem planejamento antecipado e sem qualquer implicação moral. O certo ou errado, no sentido daquilo que deveria ser,  não pode ser deduzido a partir da teoria darwiniana, embora esta teoria possa nos dizer como evoluiram nossos sentimentos morais.  Portanto, a tentativa de atribuir valores morais a um comportamento pelo fato dele ter sido selecionado não tem qualquer sentido. A propensão genética para a infidelidade não a torna inevitável (os homens podem perfeitamente controlar este impulso) ou moralmente aceitável. O mesmo raciocínio vale para qualquer tendência com componentes genéticos –não tem qualquer sentido justificar eticamente um padrão de comportamento argumentando que este é o “natural”, pois outros critérios devem ser usados para avaliar as conseqüências de nossos atos.


Herdabilidade e determinismo genético

Para compreender as contribuições da Genética Comportamental para a Psicologia é necessário discorrer um pouco sobre um conceito importante desta disciplina, mas que freqüentemente é mal interpretado: a herdabilidade (heritability). Herdabilidade é uma medida estatística que é expressa como um percentual. Essa percentual representa, em última análise, a extensão em que os fatores genéticos contribuem para variações, em um dado traço, entre os membros de uma população.

Se afirmamos que um traço é 50% herdado, isto tem que ser entendido como afirmar que metade da variância naquele traço está ligado à hereditariedade. Herdabilidade é um modo de explicar as diferenças entre as pessoas. No entanto, isso significa que a influência dos genes em um determinado traço será elevada se a herdabilidade também for alta.

É evidente que a quantificação da influência dos genes em um dado traço não implica no “determinismo genético”. Biologia não é destino, e os recentes estudos em genética comportamental na verdade confirmam a importância dos fatores ambientais. Mesmo uma característica fortemente hereditária como a fenilcetonúria pode ter a sua expressão fenotípica modulada de modo decisivo pelo ambiente. Alterações nutricionais podem permitir uma vida normal aos portadores destes genes -mas que sem essas mudanças da dieta certamente desenvolveriam o problema.

Na realidade, o percentual de herdabilidade não é algo fixo, estático. O conceito só adquire seu significado se partirmos do pressuposto de que os fatores ambientais ocorrem de modo mais ou menos homogêneo em uma dada população. Na medida em que existe uma influência atípica de algum fator, o meio passa a ser mais responsável, em termos relativos, pelas diferenças observadas entre os sujeitos.

Um outro aspecto importante que ocasiona confusão e mal-entendidos é a chamada influência poligênica. O comportamento não é diretamente influenciado pelos genes, no sentido de uma relação de 1:1 entre um gene e um comportamento. A maioria das características complexas é modulada pela ação de vários genes, o que também é chamado de influência poligênica. Na realidade, quem produz o comportamento é o cérebro, através do processamento que ocorre em circuitos neurais específicos. Mas são os genes que influem poderosamente no desenho do cérebro, predispondo o organismo a responder aos estímulos de certo modo -com uma preferência por certas classes de estímulos, por exemplo.

Cada célula nervosa expressa genes que, em última análise, governam a síntese de determinadas proteínas. Um circuito neural envolvido com uma forma de comportamento requer normalmente todo um conjunto de proteínas (tanto estruturais como catalíticas) sintetizadas no tempo e lugar certos para reger o desenvolvimento e a função desempenhada pelas células nervosas. E isso tudo é orquestrado pelos genes.

No entanto, apesar de muitas características sofrerem ação poligênica, as vezes um só gene pode ter efeitos  decisivos no comportamento. Pesquisas com animais muito simples, como o nematódio C. elegans, a mosca da fruta Drosophila melanogaster e  o camundongo Mus musculus revelam a importância de genes específicos no comportamento. Mesmo em animais complexos um único gene pode ser significativo. Em humanos, na doença de Huntington, um gene sintetiza uma proteína grande, também chamada Huntington, e como resultado ocorrem perdas de neurônios colinérgicos e GABAérgicos (que promovem a neurotransmissão através da acetilcolina e ácido ?-aminobutírico) entre outros efeitos. Ou seja, um único gene pode ter um efeito devastador no comportamento, dependendo das conseqüências específicas de sua ação.


Gêmeos e comportamento

Mas será que um comportamento complexo como o envolvido com o divórcio, para citar um exemplo curioso e polêmico, poderia ser influenciado pelos genes? Se uma característica, como a inclinação ao divórcio, é realmente influenciada pelos genes, podemos prever o seguinte: se um gêmeo idêntico se divorcia, a chance do outro se divorciar seria grande também, pois os mesmos genes estariam em ação. Os gêmeos fraternos não apresentariam essa correlação de modo tão intenso, pois partilham metade dos genes.

A correlação entre adotados no mesmo lar pode ser um instrumento útil para verificar o peso do ambiente durante a infância no produto final, a personalidade adulta. Seria esperado, dentro da teoria da causalidade tradicional do desenvolvimento da personalidade, encontrar pelo menos algumas influências em comum pelo fato destas crianças dividirem o ambiente familiar, que é semelhante pelo menos alguns parâmetros como a personalidade dos pais, nível social, econômico e cultural, sistema religioso, etc. É evidente que ser criado no mesmo lar não quer dizer que os estímulos que incidiram na criança em desenvolvimento foram os mesmos. No entanto, a previsão da teoria tradicional é que, já que o ambiente apresenta semelhanças, haveria correlação moderada entre as crianças adotadas.

A correlação entre testes de personalidade e de Q.I. entre adultos que quando crianças foram adotados e criados no mesmo lar é zero (Ploomin, 1990). Ou seja, em outras palavras o ambiente compartilhado durante a criação no mesmo lar não teve nenhum efeito detectável em testes de personalidade ou Q. I. na fase adulta. É importante salientar que estes estudos surpreendem até mesmo os geneticistas comportamentais, que muitas vezes esperavam encontrar substrato empírico para fundamentar a teoria da causalidade tradicional, uma tradição de pensamento que também fez parte de sua formação.
MgGue e Lykken (1992), em outro exemplo curioso, verificaram que, se você tem  um gêmeo idêntico que se divorcia, suas chances de se divorciar são seis vezes maiores do que seriam se seu irmão, por exemplo, não tivesse passado pela experiência do divorciar-se. Bem, se você tem um irmão gêmeo fraterno (não idêntico) divorciado suas chances caem para apenas duas vezes mais. A idade dos sujeitos variava entre 34 a 53 anos.

Em um artigo consistente sobre este tema, Jockin, Mcgue & Likken (1996, p. 296) concluiram que a personalidade prediz o risco do divórcio e, mais específicamente, “ isso ocorre em grande parte por causa da genética mais do que pelas influências do meio de que eles compartilham”.

Será que podemos concluir que o divórcio é hereditário? Sim e não. Sim, pois podemos interpretar adequadamente essa afirmação. A hereditariedade é um fator que tem valor preditivo quanto à probabilidade de divórcio (MgGue e Lykken, 1992; Jockin, Mcgue & Likken, 1996). Não, pois não estamos falando de um gene específico para o divórcio. Trata-se de uma correlação, e sabemos que correlações não envolvem, necessariamente, conecções causais. Uma terceira variável, como o nível de testosterona (em homens), pode causar o impulso pela dominância, comportamentos antisociais e criminalidade violenta e, talvez como um subproduto de outras tendências, a propensão ao divórcio (Mazur & Booth, 1998).

Esse aspecto dos traços herdados que tem como subproduto outros traços é uma das sutilezas do processo da interação gene-ambiente. Outra sutileza é a chamada “covariação gene-ambiente”.  As vezes, uma determinada característica é gerada por eventos ambientais que estão correlacionados aos genes. Deste modo, aparentemente a característica se relaciona aos eventos ambientais, mas na verdade é produto de uma covariação.

A título ilustrativo, sabemos que a composição dos tipos de fibras musculares (lentas ou rápidas) das pernas é fortemente relacionada à herança genética. Isso coloca os portadores de uma maior proporção de fibras rápidas, desde cedo, em posição vantajosa quanto à disputas em corridas curtas, de velocidade. Eles passam a receber treinamento e atenção diferencial, e o sucesso retroalimenta os estímulos ambientais que os impulsiona a adquirir maior velocidade nas quadras.  Assim, freqüentemente as propensões genéticas interatuam de forma complexa com os eventos da vida, dificultando a compreensão das relações causais. 


A importância da criação

Mas que dizer da importância relativa da criação, o fator causal mais popular (tanto em nível de senso comum como em profissionais de psicologia) para explicar a personalidade de um sujeito adulto? Um adulto não se torna agressivo devido a forma como é criado pelos pais? A infância não é um período de molde, vital para a estruturação da personalidade adulta, e os pais não são a mais importante fonte de estímulos para o desenvolvimento?

Na realidade, existem evidências sólidas em estudos de grande escala, metodologicamente convincentes, de que os genes influenciam a personalidade adulta. Surpreendentemente, o mesmo não é verdadeiro para a hipótese do papel preponderante da criação pelos pais. Uma revisão crítica da literatura mostra pouca evidência conclusiva quanto ao ponto de vista de que eventos específicos do período de infância são os verdadeiros responsáveis pela arquitetura da personalidade adulta (Seligman, 1995; Harris, 1998; Bouchard & McGue, 1990; Dunn & Ploomin, 1990; Ploomin, 1990; Ploomin & Bergeman, 1991;  Heath, Eaves & Martin, 1988; Plomin & McClearn, 1993).

É necessário salientar que uma das mais importantes fontes de evidência para a “hipótese da criação” (Harris,1998) -os estudos de continuidade entre a infância e a idade adulta –são, em sua esmagadora maioria correlações entre essas duas variáveis. A possibilidade de que uma terceira variável, como a influência dos genes dos pais, tenha relação causal com a estrutura da personalidade adulta, simplesmente não é testada ou refutada. 

Exemplos desta falha metodológica são abundantes, como a correlação entre  forma de tratamento que a mãe dá ao seu filho e a criminalidade mais tarde na vida adulta (Stattin & Klackenberg-Larsson, 1990) ou então a suposta ligação entre traumas infantis e tentativas de suicídio na idade adulta (Kolk, Perry & Herman, 1991). Como poderíamos saber ou mesmo descartar a influência dos genes nestas manifestações comportamentais?

Em um estudo feito na Dinamarca, um país onde as adoções e também os registros criminais são feitos meticulosamente, todos os meninos adotados em Copenhage em 1953 foram acompanhados (Mednick e Christiansen, 1977). Descobriu-se com base nos registros criminais dos pais (biológicos e adotivos) e dos filhos quando adultos que somente cerca de 11-12% destes cometia crimes se o pai biológico, doador de 50% dos genes, nunca houvesse cometido um crime. Isso tanto para crianças adotadas pôr pais adotivos criminosos ou não. Ou seja, não houve diferença significativa na criminalidade pela influência de ser criado por um pai adotivo criminoso.

Mas a complexidade das interações gene-ambiente se evidenciam quando observamos o restante dos dados obtidos neste estudo. Se a criança adotada tinha um pai biológico criminoso, e portanto tinha alta chance de apresentar genes relacionados à modulação deste comportamento, quase o dobro apresentava criminalidade (cerca de 22%). O pai natural não tinha contato com a criança desde os seis meses de idade. No entanto, talvez como resultado de fatores epigenéticos os filhos de pais criminosos adotados pôr pais também criminosos tinham uma incidência de 36% de crime- o que mostra uma influência reforçadora do meio nesse aspecto particular, mas em interação com os genes.

No entanto, de modo geral podemos dizer que, se de um lado temos pouca evidência convincente sobre a influência de eventos atribuíveis às interações com os pais durante a infância na personalidade adulta, por outro temos estudos apontando  que gêmeos idênticos são muito mais semelhantes um com o outro quando adultos do que gêmeos fraternos criados juntos- e isso acontece mesmo que os gêmeos idênticos sejam criados em  continentes diferentes, experienciando culturas diversas, diferentes sistemas religiosos, estrutura social, tipo de alimentação e outros fatores ambientais! Essas semelhanças foram verificadas em características como habilidades e deficiências cognitivas, depressão, raiva, bem estar subjetivo, otimismo, pessimismo e mesmo traços como religiosidade, autoritarismo, satisfação no trabalho e muitos outros (Seligman, 1995; Harris, 1998; Bouchard & McGue, 1990; Dunn & Ploomin, 1990; Ploomin, 1990; Ploomin & Bergeman, 1991;  Heath, Eaves & Martin, 1988; Plomin & McClearn, 1993).

Como argumento adicional, foi possível observar que os filhos adotados não crescem com personalidade semelhante aos seus pais adotivos; na verdade, são muito mais parecidos com seus pais biológicos, embora muitas vezes não tenham sequer os conhecido!

É evidente que os fatores não genéticos são muito importantes, e é justamente a genética comportamental que oferece substrato a essa afirmação. Mas, novamente, um exame desapaixonado das evidências aponta conexões causais diferentes do senso comum. É importante lembrar que as influências ambientais, ou não genéticas, incluem fatores que incidem desde a concepção até o nascimento (influências fetais de níveis hormonais por exemplo) e a totalidade dos estímulos do meio durante o desenvolvimento da pessoa após o nascimento.

Se o que estamos procurando é um período “modelar” no desenvolvimento, e um conjunto de fatores que possam prever e explicar o padrão de comportamento de um sujeito adulto, não parece existir muita base racional para acreditar na noção de que a forma de  criação pelos pais desenhe decisivamente a personalidade. Podemos encontrar fatores causais de maior poder preditivo olhando para o DNA e para os grupos de referência com os quais a criança interage. Harris (1998) por exemplo dedica seu livro “The nurture assumption” (já publicado em português) a refutar esse exagero do papel causal dos pais em contraste com um “pacote” de estimulação ambiental  extremamente negligenciado mas muito mais influente na formação da personalidade, e que não se passa somente na primeira infância: a socialização dos filhos a partir de seu grupo de amigos.

O argumento de Harris (1998) envolve uma compreensão mais sofisticada do tipo de ambiente psicológico para o qual nossa mente teria sido preparada para lidar. Normalmente uma das premissas implícitas presentes no raciocício dos teóricos do desenvolvimento e da personalidade é a consideração de que os pais são nossa principal fonte de estímulos, na principal idade de moldagem da personalidade. Através de uma ampla revisão em estudos etológicos, primatologia comparativa, experimentos em psicologia social, dados etnográficos de sociedades caçadoras coletoras e estudos com bebês humanos  podemos concluir que na verdade as crianças não foram projetadas para aprender e imitar os pais, mas sim as outras crianças, particularmente as mais velhas. Segundo Harris (1998) é isto que aconteceu em nosso passado evolucionário, e provavelmente o cérebro humano está configurado para processar informação específica do meio social, buscando a inserção do sujeito nas complexas hierarquias de dominância características de nossa espécie. Em outras palavras, a informação assimilada através da socialização pela interação com crianças seria prioritária e mais influente (pelo menos na formação da personalidade do adulto) do que a informação adquirida através das interações com os pais em um período limitado da infância. E o período de moldagem seria portanto mais extenso, incluindo aspectos importantes como os grupos de referência na adolescência.
Conclusão

Em síntese, o que chamei de “modelo padrão de causalidade do desenvolvimento da personalidade” não parece resistir às evidências recentes provenientes de estudos comportamentais metodológicamente adequados e das contribuições da genética comportamental. A genética pode influenciar tremendamente a personalidade, e os estímulos do meio ambiente apontado pela esmagadora maioria das teorias como os mais relevantes para compreender as causas do comportamento adulto, a interação com os pais na infância, podem ser na realidade provenientes de outras fontes até então negligenciadas, como a socialização com outras crianças ao longo da infância e adolescência.

A psicologia enquanto ciência que tem por objeto de estudo o comportamento não pode apegar-se a premissas empiricamente insustentáveis simplesmente por tradição de pensamento com raízes históricamente profundas. Um exame atento da história da evolução das teorias científicas mostra que um novo paradigma demora até ser assimilado, especialmente se revela aspectos anti-intuitivos, que não combinam com nossas formas já estabelecidas de explicar o universo. Uma visão renovada e interdisciplinar certamente será mais produtiva para compreender a complexidade da causalidade do comportamento, mesmo que essas novas premissas sejam assustadoramente antagônicas à nossa compreensão intuitiva.


Prof. Marco M. Calegaro
Psicólogo e Mestre em Neurociência