Neste preciso tempo, neste preciso lugar



No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3° andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!

Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá já para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.

--- Manuel António Pina

Tinha paixão?

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega


--- Herberto Helder

De uma alma deportada para a cidade onde vive


Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,

Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.


Sophia de Mello Breyner Andresen


Bicho livre, sem rumo, sem laços


Acabei com tudo
Escapei com vida
Tive as roupas e os sonhos
Rasgados na minha saída

Mas saí ferido
Sufocando o meu gemido
Fui o alvo perfeito
Muitas vezes no peito atingido

Animal arisco
Domesticado esquece o risco
Me deixei enganar
E até me levar por você

Eu sei quanta tristeza eu tive
Mas mesmo assim se vive
Morrendo aos poucos por amor

Eu sei, o coração perdoa
Mas não esquece à toa
O que eu não me esqueci

Eu andei demais
Não olhei pra trás
Era solta em meus passos
Bicho livre, sem rumo, sem laços

Me senti sozinha
Tropeçando em meu caminho
À procura de abrigo
Uma ajuda, um lugar, um amigo

Animal ferido
Por instinto decidido
Os meus passos desfiz
Tentativa infeliz de esquecer

Eu sei que flores existiram
Mas que não resistiram
A vendavais constantes

Eu sei, as cicatrizes falam
Mas as palavras calam
O que eu não me esqueci

Não vou mudar
Esse caso não tem solução
Sou fera ferida
No corpo na alma e no coração

Clarividência


A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: <<Que fez algum
poeta por este senhor?>> E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
Estão todos a ver onde o autor quer chegar? -

(Manuel António Pina)
Clairvoyance, René Magritte, 1936.