De uma alma deportada para a cidade onde vive


Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,

Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.


Sophia de Mello Breyner Andresen


Bicho livre, sem rumo, sem laços


Acabei com tudo
Escapei com vida
Tive as roupas e os sonhos
Rasgados na minha saída

Mas saí ferido
Sufocando o meu gemido
Fui o alvo perfeito
Muitas vezes no peito atingido

Animal arisco
Domesticado esquece o risco
Me deixei enganar
E até me levar por você

Eu sei quanta tristeza eu tive
Mas mesmo assim se vive
Morrendo aos poucos por amor

Eu sei, o coração perdoa
Mas não esquece à toa
O que eu não me esqueci

Eu andei demais
Não olhei pra trás
Era solta em meus passos
Bicho livre, sem rumo, sem laços

Me senti sozinha
Tropeçando em meu caminho
À procura de abrigo
Uma ajuda, um lugar, um amigo

Animal ferido
Por instinto decidido
Os meus passos desfiz
Tentativa infeliz de esquecer

Eu sei que flores existiram
Mas que não resistiram
A vendavais constantes

Eu sei, as cicatrizes falam
Mas as palavras calam
O que eu não me esqueci

Não vou mudar
Esse caso não tem solução
Sou fera ferida
No corpo na alma e no coração

Clarividência


A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: <<Que fez algum
poeta por este senhor?>> E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
Estão todos a ver onde o autor quer chegar? -

(Manuel António Pina)
Clairvoyance, René Magritte, 1936.